A essa altura você já viu alguns vídeos da nova trend das redes sociais, em especial via TikTok: influenciadores (e muitos desconhecidos) se comportando de forma aparentemente bizarra, reagendo em lives a partir de estímulos e interações de pessoas que os acompanham em tempo real.
E esse tipo de conteúdo vem ganhando cada vez mais visibilidade: a hashtag #LiveNPC chegou a mais de 49 milhões de visualizações apenas no TikTok.
Claro, como não poderia deixar de ser, há uma lógica por trás dessa monetização à partir do ponto de vista dos usuários das redes sociais. E existem alguns questionamentos importantes que as pessoas que lidam com produtos digitais devem fazer à partir do comportamento dos mesmos.
O início da trend
Vamos começar pelas definições básicas: Non-player Characters (NPC) é um conceito originário dos videogames, onde personagens diferentes dos principais habitam diferentes regiões do mapa do jogo, seja para compor um ambiente e dar vida a um cenário (como pedestres na franquia GTA) ou para interagir diretamente com o jogador, dando dicas valiosas ou participando de missões.
O termo foi popularizado pela TikToker canadense PinkyDoll por meio de vídeos como “Ice Cream So Good” durante o mês de julho desse ano: neles a influenciadora basicamente reage a diferentes ícones que aparecem sobre a tela, variando sua reação de acordo com o que os espectadores enviam.
A influenciadora, que tem mais de um milhão de seguidores, já disse à Vice que passa pelo menos seis horas por dia no TikTok criando conteúdo em formato NPC, podendo ganhar U$ 7.000,00 por dia ou mais, por meio de suas transmissões ao vivo. Um aumento significativo em relação à quanto ela ganhava quando começou suas transmissões ao vivo (cerca de U$ 250 por dia).
A tendência chegou a diferentes plataformas digitais, mas foi no TikTok que ela começou e está se popularizando com mais agilidade: a monetização por lá ocorre por meio do sistema de envio de “presentes” (conforme ícones abaixo), que são comprados por meio das moedas da plataforma, e que são repassadas ao NPC em troca de favores (no caso, a reação aos emojis).
Vale ressaltar que o Tiktok fica com em torno de 50% do faturamento desses presentes.
Exemplo de compras de emojis por moedas digitais do TikTok. O mais barato, com 12, sai por R$ 0,90. Já o mais caro, com 39.645 moedas, custa R$ 2,9 mil.
NPCs em território nacional
Mais do que qualquer outro, o Brasil é o país em que os influenciadores são mais relevantes para decisão de compra do mundo: 43% das pessoas já fizeram compras estimulados por influenciadores na internet.
Esse dado é extremamente expressivo quando observamos que em segunda posição está a China, país onde nasceu o próprio TikTok, com 34%.
Nosso país também tem o segundo maior número de influenciadores no planeta (atrás apenas dos EUA) com 10,5 milhões apenas no Instagram.
Ao considerarmos usuários com ao menos 10 mil seguidores que se identificam dessa forma, o Brasil já superou a marca de 500 mil influenciadores digitais, de acordo com a Nielsen.
E mais do que isso: dentre os jovens, essa é a profissão mais popular do momento (75% querem essa carreira no futuro).
Com esse solo fértil, não demoraria muito para uma tendência como a dos NPCs chegasse por aqui. E foi por meio do influenciador Felipe Bressanim, conhecido como Felca, que ela foi popularizada em território nacional.
Em seu primeiro vídeo, ele gravou sua reação ao assistir diferentes lives do TikTok com a trend, e posteriormente também criou um personagem que transmitia sua própria live estilo NPC. O vídeo atingiu 1 milhão de visualizações no YouTube nas primeiras 24 horas.
Influenciador Felca em uma de suas lives de NPC.
A lógica do consumo
De forma prática, o usuário paga para que a pessoa na live se comporte de determinada maneira. É basicamente um jogo de poder nesse sentido, onde por alguns segundos a pessoa contratada realizada uma função específica.
É uma relação puramente comercial, sem intermédios. Quando pensamos na forma de trabalho de um influenciador digital tradicional, o intuito ao final é o mesmo: realizar a conversão de seguidores e engajamento em dinheiro.
Entretanto o público de influenciadores mais tradicionais gera um conteúdo propriamente dito até chegar a esse resultado: vídeos, fotos, textos ou alguma outra forma de entretenimento que vise estimular as pessoas a passarem a segui-los e interagirem com seus perfis.
Já a lógica dos NPCs é direta e sem muitos esforços (com exceção talvez do físico, já que existem relatos de influenciadores com lives ativas por 5 horas diretas) por parte dos influenciadores: não existe uma ideia crítica ou embasada, é uma conteúdo voltado apenas para o bizarro e inusitado. Ele carece de roteiro, ordenação de pensamentos ou desfecho.
É puramente o empréstimo das reações de determinadas pessoas por um período, mesmo que sejam meros segundos.
A evolução das E-girls?
Segunda Christine Tran, pesquisadora de doutorada em cultura da Internet e trabalho digital da Universidade de Toronto, a tendência simplesmente é um tipo de performance on-line que os trabalhadores eróticos vêm aprimorando há anos.
“Acho que o streamer NPC pode ser entendido como uma espécie de neta da mídia das influenciadoras ‘e-girls’ que povoaram o Twitch e o TikTok no início de 2020”, diz ela. “Esses também são criadores auto-sexualizados que construíram seguidores combinando a estética da cultura gamer com a influência das cam girls.”
Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital do Com+, núcleo de pesquisa de comunicação e mídias digitais da USP, ressalta que “muita gente tem apontado para a ‘fetichização’ de corpos femininos e sexualização de meninas nas lives de NPC, especialmente por conta do controle sobre o corpo do outro. Da minha perspectiva, outro ponto de atenção é o ecossistema do mercado de criadores de conteúdo e os aspectos de monetização. Quais são os limites para monetizar-se a si mesmo, numa lógica do ‘sujeito como mercadoria’?”
O viés das lives muitas vezes remete ao sexual, o que é um problema considerando o livre acesso de usuários menores de idade em plataformas como o TikTok. Não à toa, a empresa começou a notificar usuários da plataforma sobre a geração de conteúdo que remeta a essa estética.
Alguns influenciadores publicaram o aviso que receberam com advertências: a plataforma vai restringir “vídeos repetitivos, não autênticos e degradante para induzir os espectadores a enviarem recompensas”.
Streamers comentam nova política de restrição de lives no TikTok — Foto: Reprodução/Júlia Silveira
Demanda à partir de público
Existe uma outra perspectiva à partir da tendência representado pelas lives de NPCs, e ela parte do público consumidor, não dos influenciadores e usuários que buscam uma (aparente) fonte de renda rápida.
Em uma reflexão excelente de PH Santos, um influenciador voltado a entretenimento de forma geral, ele questiona a relação que as pessoas tem com seu tempo livre. O que deveria ser um momento para descanso efetivo é substituído pelo uso de nossos smart phones com rolagens intermináveis em plataformas de redes sociais, buscando “negar o tempo de trabalho sem parecermos inúteis”.
Em meio a essa constante fuga do tédio, nos encontramos buscando matar o tempo livre com práticas muitas vezes associadas a aversão a inatividade.
E, nesse contexto, saturados em conteúdos digitais diversos constantemente, buscamos algo que nos chame a atenção.
O processo de apontar o scroll do celular para baixo no feed do Instagram assemelha-se muito ao movimento de puxar a alavanca de um caça níquel: queremos ser surpreendidos, encontrar um conteúdo relevante diferente do que vimos até então.
Assim se dá a popularização das lives de NPCs: a lógica de controle sobre o corpo do outro aliado a busca do bizarro para quebra de expectativa que nos alce a fuga de nossa realidade.
O influenciador PH Santos faz uma reflexão provocativa em relação a busca incessante da fuga do inútil via redes sociais.
Um recorte de nosso tempo
Assim como tantas outras, a live de NPCs é uma tendência passageira que mal teve tempo para se popularizar no Brasil, já começa a sofrer restrições impostas pelo TikTok, plataforma onde foi mais popularizada.
Não é à toa que nenhuma marca se engajou com o tema: algo raro na atualidade, uma vez que diferentes empresas tentar apropriar-se de pautas da internet com o objetivo de criarem links com suas audiências.
Apesar de estar com os dias contados, a reflexão provocada pelos NPCs deveria perdurar por mais tempo: como usamos nosso tempo livre? Até que ponto a descontração por alguns segundos justifica situações bizarras como a exercida por alguns influenciadores? Essas são perguntas que talvez possam ser respondidas por meio da autorreflexão em meio ao (saudável) tédio após o expediente de trabalho.
A nossa newsletter é gratuita e o que nos motiva escrever é ajudar com conteúdo como este, as pessoas. Se gostou, compartilhe com seus amigos e na sua rede social.
Se quiser compartilhar via WhatsApp, clique no botão abaixo…
Recentemente o Felca fez um video dizendo que não esperava esta repercussão e que ficou surpreso com este comportamento de darem dinheiro pra ele 🌽. Ele escolheu algumas instituições sociais e doou o que ele arrecadou no TikTok com as lives NPC.