Mesmo trabalhando na área de produto a alguns anos, raramente me deparei com momentos de descontinuidade de um produto em específico por conta de sua performance cambaleante. Mesmo com métricas apontando um baixo desempenho com KPIs se mantendo imutáveis apesar de esforços contínuos da área do produto em questão, muitas vezes o mesmo continua ativo e funcional.
E o pior: mesmo que esses produtos resultem em um breakeven, por definição prática eles estão dando prejuízo a empresa. A equipe dedicada aquele produto poderia concentrar seus esforços em uma vaca leiteira, estrela ou até mesmo em um questionamento (seguindo a matriz BCG), e não em um abacaxi.
As métricas e frameworks usados em produtos não funcionam apenas para compreendermos o posicionamento de uma organização e de seus bens: eles ajudam visualmente a nos organizarmos para tomada de decisões estratégicas.
Se ao avaliar, por exemplo, o ciclo do produto com o qual eu trabalho, e sua classificação ser de Declínio/Sunset, significa que a tecnologia em relação ao mesmo se tornou obsoleta, ou talvez o comportamento e necessidades do público até então atendido mudaram, entre diversos outros possíveis motivos.
E, novamente, mesmo com essa classificação, muitas vezes esse produto não é descontinuado. Uma das razões pode ser o ego do PO/PM responsável, que acredita que as ações sendo empregadas pela equipe irão resultar em uma mudança eventual.
Pode ser ainda o receio, em um mercado que vem sofrendo com layoffs contínuos a algum tempo, ou ainda o bom e velho top-down (especialmente em organizações menores) onde os líderes apontam a necessidade de persistir com determinada feature, por exemplo, para que haja tempo suficiente de seus clientes a conhecerem e interagirem com ela.
Persistência ou adaptação?
Existem diferentes cases onde organizações persistiram em determinados modelos de negócio e obtiveram êxito, ou empresas que diversificação seu escopo de atuação e conseguiram se reerguer e até mesmo expandir seu faturamento depois de anos em declínio.
Amazon
Nos agora longínquos anos 2000, Jeff Bezos disse em uma entrevista para a “Evening Magazine” de que “havia 30% de chance de construirmos uma empresa de sucesso” em alusão a Amazon, a empresa que basicamente reinventou como boa parte do mundo enxerga as transações online. Na época, o fundador disse a seus pais (os maiores investidores até então, responsáveis por U$ 246 mil) que era “muito provável que eles perdessem todo o investimento na empresa”.
Quando a Amazon foi criada, seu foco inicialmente foi no segmento de livros: isso porque na época (1997) existiam mais itens presentes na categoria de livros do que em qualquer outra (como artigos esportivos, vestuário etc.). Ou seja, seria basicamente impossível construir um espaço físico com todos esses itens: a única forma de fazer isso seria de forma online.
Entretanto, durante seus primeiros dias, um problema recorrente era de que a empresa não tinha estoque próprio e podia levar uma semana ou mais para a Amazon entregar os livros comercializados aos clientes.
Os distribuidores de livros exigiam que os varejistas pedissem 10 livros de uma só vez, entretanto a empresa ainda não estava fazendo vendas suficientes para atender a esse volume de remessa.
Em uma entrevista publicada pela revista Playboy no ano 2000, Bezos traz a forma como eles contornaram o problema:
“Encontramos uma brecha. Seus sistemas (das distribuidoras) foram programados de forma que você não precisasse receber dez livros, você só precisaria encomendar dez livros. Então encontramos um livro obscuro sobre líquens que eles tinham em seu sistema, mas estava fora de estoque. Começamos a encomendar o livro que queríamos e nove cópias do livro sobre líquens. Eles enviariam o livro de que precisávamos e uma nota que dizia: 'Desculpe, mas estamos sem o livro de líquens.’”
Essa é foi a forma proativa de encontrada pela Amazon visando manter o modelo de negócios inicialmente adotado pela empresa: de forma persistente, eles encontraram um modo de continuarem focados no mercado de livros para expandir sua plataforma online.
Nintendo
É muito provável que você não saiba, mas uma das maiores e mais representativas empresas do segmento de videogames começou suas atividades sob o nome “Nintendo Playing Card Company”, comercializando cartas de jogos tradicionais, o mais notável deles sendo o Hanafuda, no ano de 1889.
Em pouco tempo a empresa se tornou líder do segmento no país, e por seu preço ser extremamente baixo e acessível, não sofreu grandes perdas mesmo em períodos de instabilidade no Japão, como a 2ª guerra mundial.
Entretanto, em 1949 o então presidente da companhia Hiroshi Yamauchi em conjunto com outros líderes tinham a visão de que a Nintendo só iria se expandir até certo ponto ao se manter no segmento de cartas para jogos, e à partir disso propôs uma expansão para outros mercados.
Alguns deles incluem a produção de arroz instantâneo, motéis (!), serviços de táxi e produtos para bebês, como carrinhos de passeio. Por diferentes motivos, em especial a falta de familiaridade com escopos tão diversos com os quais a empresa não possuía experiência, nenhum deles persistiu por muito tempo.
Foi só em 1973 que a empresa entrou no mercado de games Arcade, e a partir daí passou a desenvolver os videogames conhecidos até hoje. O caso da Nintendo foi de adaptação não pela necessidade de sobrevivência, mas sim pela necessidade de crescimento: a empresa poderia continuar apenas no segmento de cartas sem a ambição necessária para se desenvolver e expandir seu escopo.
Nokia
Outros exemplo de adaptação conhecido é o da Nokia, que já ocupou o posto de maior fabricante de celulares do mundo por 14 anos entre a década de 90 e começo dos anos 2000 por meio de celulares com interfaces simples para o público não habituado a tecnologia, preços acessíveis e durabilidade.
Com a popularização de competidores no mercado mobile como o Blackberry, iPhone e posteriormente os modelos Android, o segmento foi basicamente tomado: a resposta da companhia com o Windows Mobile acabou não rendendo os frutos esperados, culminando na venda da divisão de celulares para a Microsoft em 2013 por uma fração do que ela chegará a valer.
Atualmente a Nokia não atua na indústria de fabricação de celulares há alguns anos para focar em tecnologia voltada ao segmento B2B, concentrando-se em infraestrutura de telecomunicações, incluindo redes 5G, serviços baseados em cloud e outros.
A empresa também possui um portfólio de patentes nas áreas de telecomunicações e tecnologia móvel e gera receita ao licenciar as mesmas para outras organizações utilizarem em suas ofertas.
A mensagem atual da empresa finlandesa é que LTE privado e 5G estão tornando sua divisão empresarial em desenvolvimento um notável motor de crescimento para negócios mais amplos.
No quarto trimestre do ano passado a Nokia adicionou 45 novos clientes para seus produtos de redes privadas, superando o total do terceiro trimestre (30 novos clientes) em 50% e levando sua contagem de clientes além 560 ao todo.
Durante o Mobile World Congress 2023 realizado em Barcelona no mês de março, o CEO da empresa, Pekka Lundmark, anunciou que o segmento de enterprise cresceu 27% em faturamento, somando 2 bilhões de euros (ou 8% das receitas totais da empresa), estabelecendo também o claro objetivo em crescer mais rápido do que o mercado no segmento de operadoras de telecomunicações.
Durante o evento a ainda Nokia revelou sua nova marca, pautada pela repaginação da companhia, focando na liderança de mercado nesse novo momento de modernização da indústria.
Diferente a Nintendo, a Nokia precisou se adaptar para sobreviver, e a decisão de descontinuidade do segmento que até então a empresa ocupara como líder quase que absoluta ocorreu só depois de uma tentativa de reformulação com o Windows Phone.
Com a falta de êxito, a empresa efetivamente descontinuou sua linha mais popular até então para poder se adaptar para o mercado B2B.
Fatores de decisão
A linha é tênue: quando um produto pode verdadeiramente trazer resultados com um prazo um pouco maior do que foi originalmente mapeado, e quando ele deve ser descontinuado?
Existem diferentes formas de buscar responder a essa pergunta, e talvez uma dela seja por meio da utilização do framework Fit for Purpose (F4P): ele foi criado visando cobrir o gap da eficácia dos negócios, revisando a forma como estratégias são criadas e trazendo boas práticas para atender às expectativas do cliente.
As métricas empregadas pelo framework podem ajudar em um direcionamento em relação a essa tomada de decisão:
1) Métricas chave de adequação (Fitness Criteria/KPIs): os indicadores mais importantes a serem acompanhados pelo negócio, levados em consideração como cliente escolheu esse produto em detrimentos dos demais.
Um exemplo prático, do ponto de vista de um restaurante que vende suas refeições via iFood: a avaliação de clientes e o tempo de espera são provavelmente seus dois KPIs mais importantes que resultam diretamente na tomada de decisão dos usuários do aplicativo.
2) Métricas de Saúde (Health Indicators): indicadores que mostram o desempenho da empresa e seu grau de confiabilidade. Devem gerar alertas a partir do momento em que saem de uma faixa “saudável” para o andamento do negócio.
3) Métricas de Melhoria (Improvement Drivers): Métricas que originalmente são classificadas como KPIs ou Métricas de saúde, mas por entendermos que precisam de melhoria, passam a fazer parte dessa denominação.
A ideia é estabelecermos um target durante uma janela de tempo específica até que os resultados esperados sejam obtidos: quando isso acontece, elas voltam para suas classificações originais como KPI ou de saúde.
4) Métricas de Vaidade (Vanity Metrics): indicadores que mesmo se forem positivos, não contribuem de fato com o que define o sucesso do negócio.
Essas são fáceis de serem observadas por qualquer PO e PM: métricas que muitas vezes ocupam headlines de jornais e publicações, mas que muitas vezes não desempenham valor significativo a organização.
Algo comum é o anúncio de empresas que ocupam a 3ª ou 2ª posição de determinado segmento: como isso ajuda efetivamente a estratégia do negócio? Como é calculado? Etc.
O ciclo de vida, já destacado anteriormente, também pode ajudar a ter uma concepção dos próximos passos a partir do estágio em que o produto se encontra.
Outro fator importante é justamente na capacitação da equipe de produto da organização: citando um exemplo de terras tupiniquins, o Itaú vem passando desde 2020 por um processo de transformação digital por meio de um modelo de comunidades integradas, com mais de 6 mil pessoas só de produto e 11 mil só da área de tecnologia.
Com um número tão grande de colaboradores, o desafio é igualmente proporcional: o banco passou a investir de forma massiva em trilhas de formação com workshops, espaços para compartilhamento de aprendizados e bootcamps são só alguns exemplos adotados pelo Itaú de possíveis ações que podem ajudar a fornecer os insumos necessários para aprimoramento da tomada de decisão de profissionais da área de produto.
Esses são apenas um pequeno número de exemplos dentre diversos outros presentes no mercado para ajudar na identificação de necessidade de encerramento de um determinado produto: é vital o PO ou PM buscarem antever a situação de forma proativa, uma vez que é muito melhor os mesmos sugerirem a descontinuação de seu produto do que essa avaliação partir de um terceiro.
No caso do preciosismo de líderes, estar munido de dados e informações ajudam no debate e na tomada de decisão por parte da organização. No fim do dia, precisamos adotar boas práticas e cases de mercado, além do acompanhamento de diferentes métricas para uma melhor avaliação, sem apego, de como devemos seguir com a estratégia dos produtos pelos quais somos responsáveis.
A nossa newsletter é gratuita e o que nos motiva escrever é poder interagir e ajudar com conteúdo como este, as pessoas. Se gostou, compartilhe com a sua rede.
Se quiser compartilhar via WhatsApp, clique no botão abaixo…