A virada da Starbucks com IA
Nos últimos anos, a Starbucks virou um caso de aprendizado forçado sobre o uso de tecnologia em operações de varejo. Depois de ser celebrada como pioneira digital, a empresa se viu presa em um paradoxo: o sucesso do aplicativo de pedidos criou gargalos tão intensos nas lojas que destruiu a experiência de cliente que sustentava o negócio. Entre 2022 e 2024, a marca enfrentou cinco trimestres seguidos de vendas estáveis ou negativas nas mesmas lojas.
O volume crescente de pedidos personalizados, impulsionado por redes sociais, gerou uma sobrecarga operacional que transformou o balcão de retirada em um “mosh pit”. A crise culminou na saída da antiga liderança e na chegada de Brian Niccol, ex-CEO da Chipotle, em setembro de 2024, com a missão de consertar a máquina sem perder o aroma da marca.
O colapso do Siren System
A primeira resposta da empresa foi o Siren System, um investimento pesado em automação física. Com máquinas redesenhadas, dispensers automáticos de gelo e leite e blenders mais rápidos, a promessa era reduzir o tempo de preparo de um frappuccino de 87 para 35 segundos. Na teoria, o ganho de produtividade parecia incontestável; na prática, o resultado foi o oposto.
A Starbucks mediu a eficiência por uma métrica simplista, o tempo para fazer uma bebida, e ignorou o contexto real de dezenas de pedidos simultâneos vindos do app e do balcão.
O sistema acelerava um drink isolado, mas travava o fluxo coletivo. O professor Leslie Willcocks, da London School of Economics, chamou o fenômeno de “disaster faster”: quando a automação amplifica falhas organizacionais já existentes. Em pouco tempo, a empresa percebeu que não precisava de máquinas mais rápidas, mas de processos mais inteligentes.
Ao assumir, Brian Niccol foi direto: “equipamento não resolve experiência”. Sob o plano Back to Starbucks, a empresa abandonou a ideia de substituir trabalho humano por eficiência mecânica e voltou a investir em baristas. Foram reabertas contratações, ampliadas as horas de pico e reduzido o ritmo de instalação do Siren System.
O foco passou a ser aumentar o rendimento sem destruir o elemento humano que dava à marca seu “terceiro lugar”, o espaço entre casa e trabalho onde a conexão importava tanto quanto o café. Niccol definiu uma tese simples: IA deve apoiar, não substituir. E a Starbucks começou a reconstruir sua tecnologia sob o princípio de “human augmentation”, ou aumento humano.
Do hardware aos hábitos: o Siren Craft System
A primeira etapa da nova filosofia foi o Siren Craft System, uma revisão completa da operação conduzida com os próprios baristas. O projeto trocou a engenharia de máquinas por engenharia de hábitos.
O exemplo mais simbólico foi a inversão da sequência de preparo de bebidas com espresso: ao extrair o café antes de vaporizar o leite, a empresa economizou segundos preciosos por drink.
Outro avanço veio com o papel de Peak Play Caller, um supervisor assistido por IA que monitora o fluxo de pedidos e redistribui tarefas em tempo real. Em maio de 2024, o sistema já operava em 1.160 lojas nos Estados Unidos, com expansão total para a América do Norte até o fim de julho. As lojas-piloto registraram aumento de throughput e redução de tempo médio de espera acima de 10%, validando o novo modelo.
Deep Brew: o cérebro invisível da operação
No centro dessa arquitetura está o Deep Brew, o sistema de IA proprietário da Starbucks. Ele processa dados de quase 100 milhões de transações semanais em tempo real, alimentando desde o marketing personalizado até o planejamento de estoque e escalas de turnos.
O Deep Brew não é um algoritmo de substituição, mas uma camada analítica que orienta decisões humanas. Ao identificar padrões de demanda por loja, clima e horário, o sistema ajusta previsões de estoque e define o número ideal de funcionários por turno.
É o tipo de automação que amplia discernimento em vez de reduzir pessoas. Sob a nova gestão, o Deep Brew virou a espinha dorsal sobre a qual toda a estratégia de IA modular seria construída.
As novas frentes de IA: Green Dot, SmartQ e NomadGo
A partir dessa base, a Starbucks lançou um ecossistema de ferramentas complementares. O Green Dot Assist, desenvolvido em parceria com a Microsoft e o OpenAI, é um assistente generativo instalado em iPads nas lojas. Ele permite que baristas peçam receitas, resolvam falhas de equipamentos ou organizem escalas em minutos.
Em testes com 35 lojas, o tempo gasto com dúvidas operacionais caiu quase 40%. O SmartQ, por sua vez, é o algoritmo que reorganizou o fluxo de pedidos. Ele prioriza filas de acordo com canal e expectativa: quatro minutos para balcão e drive-thru, de 12 a 15 minutos para mobile.
O resultado foi um aumento de dois dígitos na entrega de pedidos em menos de quatro minutos, segundo o relatório de Q3 2025. Por fim, a parceria com a NomadGo trouxe visão computacional para o inventário. Um tablet com câmera 3D faz contagem de estoque em minutos, aumentando em até oito vezes a frequência de auditoria e reduzindo rupturas de ingredientes como leite de aveia e espuma fria.
Custos ocultos e desafios reais
A execução, porém, está longe de perfeita. Fóruns de baristas mostram resistência à adoção de novos processos e apontam que o Siren Craft System funciona bem apenas em lojas remodeladas.
Em espaços antigos, o fluxo físico de estações inviabiliza a sequência ideal. A padronização completa exigirá um ciclo de reformas com custo bilionário e impacto de longo prazo. Há ainda o desafio ambiental: os data centers que suportam modelos generativos são altamente intensivos em energia, gerando críticas de sustentabilidade. E, financeiramente, o plano é uma aposta arriscada. A Starbucks vem reportando margens comprimidas e transações em queda.
O sucesso da estratégia depende de provar que o investimento pesado em IA e pessoas trará retorno via fidelização e experiência superior.
A nova fronteira: equilíbrio entre máquina e mão
O aprendizado central da Starbucks é que eficiência sem empatia destrói valor. O Siren System tratava o humano como gargalo; o Siren Craft System o recoloca como diferencial competitivo.
A empresa deixou de medir sucesso apenas por velocidade e passou a olhar fluidez, engajamento e consistência. A cultura da marca agora combina quatro camadas: processo simplificado, tecnologia contextual, IA de apoio e protagonismo humano.
É o que Brian Niccol chama de “Back to Starbucks”, uma volta às origens pela via mais moderna possível. A IA cuida da complexidade invisível para que o barista volte a cuidar do cliente visível.
O que o mercado pode aprender
O caso Starbucks é um aviso para todo o varejo orientado por tecnologia. Automatizar sem redesenhar o sistema é como acelerar um carro com o volante travado. IA só gera ROI quando reforça propósito e não apenas velocidade. O novo modelo da empresa mostra que o futuro do trabalho no varejo não é humano versus máquina, mas humano com máquina.
Se conseguir escalar essa filosofia, a Starbucks terá feito mais do que salvar sua operação: terá redefinido o manual de transformação digital para empresas que insistem em confundir eficiência com experiência.
Fontes
CIO.inc – Starbucks Reboots Its AI Approach After Automation Stalls
The Guardian – Starbucks says cutting shop staff in favour of automation has failed
Restaurant Dive – Starbucks introduces virtual assistant Green Dot Assist (Microsoft Azure)
LSE Blogs – Is Starbucks’ Reversal of Automation the New Game in Town?
About Starbucks – How ‘Back to Starbucks’ is Reshaping Every Aspect of the Coffeehouse Experience
CX Dive – Starbucks CEO Niccol Bringing Order to Mobile Ordering