Apple e a Inteligência que nunca chegou
Quando a empresa mais valiosa do mundo tropeça na tecnologia mais promissora do século.
Em 2010, a Apple fez um movimento ousado e antecipado: adquiriu a Siri. A aposta era clara. Interfaces conversacionais seriam a próxima camada de interação homem-máquina. Enquanto o mercado ainda tentava entender o que era machine learning, a Apple já incorporava voz ao sistema operacional.
Mas 15 anos depois, a Siri ainda é motivo de frustração. O lançamento do ChatGPT, em 2022, expôs o tamanho do atraso. Internamente, a Apple reconheceu que seus modelos eram pelo menos dois anos inferiores aos líderes. E o mercado sentiu. A estreia do “Apple Intelligence”, prevista como uma resposta competitiva, entregou pouco, atrasou muito e virou alvo de acusações de vaporware.
O que explica essa trajetória irregular?
Segundo o próprio estudo da Apple em 2025, “The Illusion of Thinking”, talvez a resposta esteja na pergunta errada. Para a Apple, os grandes modelos de linguagem não são inteligentes, apenas replicam padrões. O que parece raciocínio, na verdade, é cálculo estatístico.
Essa visão não é apenas técnica. É política.
Em vez de competir na corrida por quem “pensa melhor”, a Apple tenta mudar o critério do que significa “pensar”. E transforma sua lentidão em tese.
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Ei Siri…?
O começo parecia promissor. A Apple não apenas lançou a Siri, como estruturou a tecnologia como parte da experiência central do iPhone. A proposta não era ter um assistente. Era ter um coprocessador de voz, sempre ativo, integrado ao sistema.
Mas a execução falhou em vários níveis.
Durante anos, a Siri foi incapaz de lidar com comandos complexos. Erros recorrentes, baixa utilidade prática e respostas genéricas a tornaram obsoleta rapidamente. Enquanto Alexa e Google Assistant ganhavam terreno, a Apple hesitava em investir pesado na evolução da Siri.
O estudo cita que, ainda em 2024, a assistente era “notoriamente limitada”. As tentativas de reconstruí-la do zero aconteceram tarde demais, e com pouca clareza de propósito.
Talento sem poder não muda cultura
A contratação de John Giannandrea em 2018 parecia sinalizar uma virada. Ex-Google, líder da transição para a estratégia “AI First”, ele era visto como a peça-chave para destravar a ambição da Apple em IA.
Mas esbarrou em algo maior que qualquer currículo: o bloqueio executivo.
Craig Federighi, responsável pelo software da empresa, via IA como “consumo de recurso sem retorno prático”. A disputa entre áreas travou orçamento, desmotivou times e gerou frustração generalizada. A cultura de evitar riscos contaminou até as iniciativas mais promissoras.
Giannandrea, mesmo com peso técnico e histórico em IA, não teve espaço para fazer. Em 2025, foi removido do projeto Siri. Segundo relatos, aliviado por se livrar da responsabilidade.
A conclusão é dura: a Apple contratou bem, mas liderou mal. E desperdiçou sete anos cruciais.
Quando o ChatGPT virou ameaça existencial
O lançamento do ChatGPT em novembro de 2022 não foi apenas um sucesso de produto. Foi um colapso narrativo para a Apple.
A empresa que liderava o discurso de inovação agora assistia, em silêncio, a Microsoft dominar o novo ciclo de atenção tecnológica. Internamente, análises mostravam que o modelo da OpenAI era mais preciso, mais flexível e respondia a 30% mais perguntas do que a Siri.
Em vez de liderar, a Apple foi obrigada a reagir. Surgiu o Apple Intelligence, anunciado em 2024 com a promessa de transformar a Siri em uma assistente realmente útil. Mas o que foi entregue no primeiro ano foi decepcionante: ferramentas básicas de texto, um playground de imagens e várias promessas postergadas para 2026.
O contraste com os concorrentes foi brutal.
Enquanto Microsoft colocava Copilot em toda sua suíte, o Google lançava Gemini e o Meta abria os códigos do LLaMA, a Apple enfrentava críticas sobre vídeos promocionais enganosos e foi processada por propaganda enganosa no iPhone 16.
O estudo é claro: a privacidade, que sempre foi escudo da Apple, virou limitação técnica. Processar IA localmente, sem mandar dados para a nuvem, exige mais tempo, mais engenharia e mais compromisso com performance de ponta. O resultado? Atraso.
A narrativa filosófica
A Apple sabia que estava atrás. E decidiu jogar um jogo diferente.
O paper “The Illusion of Thinking”, publicado em 2025, questiona diretamente a base da IA generativa moderna. Afirma que os modelos não pensam, não compreendem e não raciocinam. Apenas combinam padrões. É um argumento que tem ecos acadêmicos, mas também uma utilidade estratégica evidente.
Se os modelos dos concorrentes são “ilusões”, então não é necessário superá-los. Basta propor algo mais real, mais humano, mais assistivo. A Apple reposiciona o que está fazendo como uma nova categoria: IA prática, local, ética, e sem promessas fantasiosas de cognição.
Essa tese também ajuda a justificar a lentidão. Enquanto os outros correm para entregar “inteligência artificial”, a Apple se compromete a entregar “inteligência assistiva”.
A diferença não é apenas semântica. É narrativa.
Os concorrentes seguem entregando
A tabela abaixo resume o contraste entre as big techs no jogo da IA:
Enquanto isso, a Apple ainda tenta lançar o básico.
O futuro depende de coragem ou coerência
O relatório termina com um diagnóstico direto. A Apple precisa resolver cinco frentes urgentes:
Recuperar capacidade técnica: avançar rápido em modelos próprios ou considerar parcerias
Alinhar o alto escalão: criar uma visão comum que libere orçamento, prioridade e autonomia
Comunicar com verdade: prometer menos, entregar mais, restaurar credibilidade
Explorar sua vantagem estrutural: IA integrada ao sistema, segura, eficiente e útil
Manter sua tese filosófica: reforçar o discurso de IA útil, ética e transparente
Os próximos iOS devem apontar uma direção. Se a nova Siri chegar com potência real, a Apple pode reconquistar espaço. Se adiar novamente, corre o risco de perder o trono que construiu com décadas de inovação.
A Apple sempre foi excelente em chegar por último e vencer. Mas IA não parece ser um ciclo de produto. É um ciclo de poder. E talvez, dessa vez, chegar por último não seja uma escolha, seja só reflexo da hesitação que nunca se viu na empresa do Steve Jobs.