Aquisição da CRMBonus pelo iFood reposiciona a guerra do delivery
Com CRM nativo e giftback, o iFood cria lock-in para restaurantes e varejistas, elevando a barreira de saída no exato momento em que a Keeta chega prometendo taxas menores.
A compra de 20 % da CRMBonus pelo iFood não é mais um investimento tático. É o início de uma mudança estrutural que empurra o maior app de entregas do país para o centro do varejo, longe da zona de conforto da “última milha”. Segundo o próprio relatório interno do iFood, o acordo foi pensado para tirar a disputa do terreno das taxas de entrega e levá-la para um império de dados, fidelidade e valor capturado em todo o ciclo de vida do cliente.
A transação inclui opção de compra total em até três anos, com valuation estimado em até R$ 10 bi, tornando o negócio potencialmente um dos maiores M&As de retail-tech da América Latina.
Num mercado prestes a receber a Keeta, braço da chinesa Meituan, e convivendo com a pressão constante do Rappi, a estratégia do iFood grita: em vez de brigar por centavos de comissão, vamos tornar a comissão irrelevante.
Anatomia do acordo
A participação de 20% adquirida pelo iFood foi costurada num contrato que mistura investimento direto em caixa com cláusulas de earn-out que podem destravar a compra integral da CRMBonus em até três anos. Embora o valor pago nesta primeira fatia permaneça confidencial, duas fontes ligadas ao processo citam um teto de dez bilhões de reais caso todos os gatilhos de performance, receita, margem SaaS e adesão de restaurantes, sejam batidos. Esse formato protege o iFood contra sobrepreço inicial, mas dá à CRMBonus incentivo para acelerar roadmap de IA, sobretudo nos módulos Vale Bônus e CRM.
O acordo ainda garante ao iFood um assento no conselho, poder de veto sobre futuras rodadas e direito de preferência sobre qualquer oferta rival. Na prática, a food-tech passa a influenciar diretamente o backlog de produto da CRMBonus e a calibrar prioridades para que se encaixem no ecossistema iFood Pago, Clube iFood e carteira digital. A CRMBonus, por sua vez, recebe capital para recomprar ações de early investors e acelerar contratações em ciência de dados, além de acesso à base de 45 milhões de usuários ativos do iFood, algo impossível de replicar sozinha nesse prazo.
Do ponto de vista de mercado de capitais, a transação é também um movimento defensivo. Ao evitar um M&A total imediato, o iFood preserva liquidez em ano de juros altos, mas garante uma “opção de compra” que pode ser exercida quando as sinergias estiverem comprovadas. É um mecanismo semelhante ao usado pela Amazon ao comprar gradualmente a Whole Foods, em que cada estágio de integração reduziu risco operacional e ajustou valuation à entrega real de valor.
O que já existia entre as marcas
Desde 2024, assinantes do Clube iFood recebem créditos Vale Bonus emitidos pela CRMBonus para usar em grandes varejistas. O recurso funcionava de forma quase autônoma, fora do core logístico do app. A aquisição muda tudo: o Vale Bonus passa de “benefício de nicho” a pilar de uma plataforma integrada de aquisição e retenção, conectada ao iFood Pago e ao motor de recomendação do marketplace.
O próprio iFood confirma que a parceria anterior já gerava ganhos de tráfego e fidelidade tanto para restaurantes quanto para varejistas de outras verticais.
Avançando de cupom a ecossistema
Com a CRMBonus dentro de casa, o iFood tem três jogadas óbvias:
Turbinar o iFood Pago com um CRM preditivo que sugere campanhas de cashback e fidelidade aos parceiros, reduzindo churn e elevando LTV.
Transformar o Vale Bonus em canal de vendas direcionado, empurrando tráfego online e offline para restaurantes e varejistas, barateando CAC e diminuindo dependência de descontos profundos.
Lançar o PresenteIA, social commerce plugado no WhatsApp que recomenda, cobra e entrega presentes via malha logística do iFood, ideia vista pelo CEO da CRMBonus como “transformacional” para o varejo.
Esses movimentos ampliam o escopo do iFood para bem além de comida. Delivery vira porta de entrada para um marketplace de serviços financeiros, recompensas personalizadas e social commerce.
A chegada da Keeta: antecipar e marcar território
A Meituan vai estrear o superapp Keeta em São Paulo com investimento de R$5 bi até 2030, prometendo tecnologia de drones, lockers inteligentes e taxas de comissão agressivas para atrair restaurantes. O relatório do iFood reconhece o risco de uma guerra de preços, mas aposta na criação de altos custos de troca via dados e fidelidade em vez de reduzir comissão.
Ao dominar o CRM, o iFood muda o campo de batalha: restaurantes que usam iFood Pago, CRM embarcado e Vale Bonus precisariam migrar não só pedidos, mas também seu banco de dados de clientes e todo o programa de fidelidade para trocar de plataforma. Isso eleva a barreira de saída e neutraliza a proposta de preço baixo da Keeta.
Restaurantes e varejistas: faca de dois gumes
Para o pequeno restaurante ou varejista que hoje depende de cupons esporádicos, a integração dá acesso, sem custo fixo inicial, a um motor de segmentação que cruza ticket médio, frequência e itens preferidos para sugerir campanhas de giftback em poucos cliques. Redes como Vivenda do Camarão viram o uso de Vale Bônus elevar o gasto por visita em 18% durante pilotos internos, segundo executivos que acompanharam a prova de conceito. Já grandes varejistas, caso do Grupo Pão de Açúcar, testam o CRM Ads para redirecionar fluxo do delivery de refeições para ofertas de supermercado em horários de pico ocioso.
O outro lado da moeda é o aumento do lock-in. Ao concentrar pedidos, pagamentos e dados de primeira parte no mesmo stack, o parceiro perde alavancas de negociação se quiser mudar de plataforma. Hoje 62 % dos consumidores brasileiros abandonam uma compra após experiência ruim de entrega ou atendimento. Se o restaurante decidir migrar para a Keeta, precisará reconstruir seu banco de dados de clientes, refazer jornadas de engajamento e, muitas vezes, aceitar taxas de instalação de sistemas próprios ou externos de CRM. Isso reduz o poder de barganha e torna a discussão de “taxa de comissão” menos relevante frente ao custo de saída.
Há ainda a questão da independência de marca. Programas de fidelidade white-label costumam diluir a identidade do restaurante atrás da identidade da plataforma. A CRMBonus promete resolver esse ponto com personalização de layout e domínio próprio nos microsites de giftback, mas a experiência mobile continua amarrada ao app do iFood. Restaurantes terão de decidir se preferem alcance e dados em escala ou controle total sobre a experiência, um dilema que ficará mais agudo quando a Keeta oferecer taxas agressivas para conquistar market-share, a chinesa planeja investir um bilhão de dólares em logística e subsídios no Brasil nos próximos cinco anos.
Consumidores: personalização real ou só mais notificação?
Do lado do usuário final, a promessa é clara: ofertas mais relevantes, bônus que funcionam fora do ecossistema de comida e jornada de presente que começa no WhatsApp e termina com entrega na porta. O motor de IA da CRMBonus já analisa dez bilhões de interações anuais para prever propensão de compra, segundo dados de pitch da Série B em 2024. A integração com o histórico de pedidos e meios de pagamento do iFood deve multiplicar a granularidade desses modelos, permitindo campanhas quase em tempo real.
O risco é transformar conveniência em ruído. Estudos globais mostram que “notification fatigue” é um dos principais motivos de opt-out em programas de fidelidade, agravado quando as mensagens não carregam valor imediato. Relatório da MarkWide Research aponta que o uso excessivo ou mal segmentado de push notifications leva usuários a desativar permissões ou abandonar o app por completo, comprometendo ROI de campanhas digitais. No Brasil, o mercado de programas de fidelidade deve crescer 16,9 % em 2025, puxado justamente por personalização e integração com Pix, segundo pesquisa da Research & Markets. Ou seja, há espaço para boas experiências, mas a paciência do consumidor é finita.
Transparência sobre uso de dados será decisiva. O iFood coletará não só preferências de cardápio, mas também padrões de gasto em moda, farmácia e entretenimento à medida que o Vale Bônus se expande. Sem políticas claras de governança e opções simples de opt-out, o ganho de relevância pode virar perda de confiança. A equação final dependerá da capacidade do iFood de entregar valor concreto em cada ping, não apenas lembrar o usuário de que há um cupom disponível.
O que vem a seguir
A cláusula de compra total coloca um cronômetro de três anos na mesa. Se a integração gerar o crescimento esperado em LTV dos parceiros e novas linhas de receita via social commerce, o iFood deve desembolsar até R$ 10 bi para abocanhar 100 % da CRMBonus, consolidando a posição de “sistema operacional” do varejo brasileiro. Keeta terá de escolher entre replicar a estratégia de ecossistema ou dobrar a aposta em logística barata, sabendo que margem pode evaporar com subsídio prolongado.
Quem acompanha o setor deve observar três indicadores nos próximos 24 meses: share de tráfego offline gerado pelo Vale Bonus, participação da receita SaaS no mix do iFood e velocidade de adoção do PresenteIA. Se a soma desses vetores for alta, o delivery brasileiro deixará de ser guerra de rotas. Será disputa por quem controla a vitrine digital do varejo.
No fim, a compra da CRMBonus não é sobre cupons. É sobre garantir que, antes mesmo de o cliente pensar no app de entrega, o iFood já tenha definido onde ele vai gastar, quanto vai gastar e como vai receber valor em troca. E isso muda todo o jogo.
Concorrência é sempre saudável e o melhor para o consumidor final.
É um "esticador" de empresas e gestores de produto.
Entendo que o iFood está indo no caminho certo investindo em fidelidade da clientela via ecossistema de produtos ao passo da "ameaça" da keeta.
Ansioso para ver como vai se desenrolar