Por que o iFood é mais plataforma do que delivery
O iFood é visto como um aplicativo de pedir comida, mas sua essência vai muito além disso. A empresa construiu uma arquitetura modular e orientada a dados que transformou um serviço de intermediação em um ecossistema digital. Esse movimento permitiu escalar do call center de Jundiaí a milhões de pedidos mensais e, mais importante, expandir para novas verticais de varejo e serviços financeiros. A lógica é simples: usar tecnologia para reduzir fricção, aumentar efeitos de rede e reter transações dentro da plataforma.
Do catálogo impresso ao superapp
Em 2011, o iFood nasceu como Disk Cook, com catálogos impressos e pedidos por telefone. O modelo travava no limite do humano: cada pedido exigia mais operadores, mais custo e mais erros.
Em 2012, a empresa lançou site e aplicativos. No começo, 80% dos pedidos vinham do desktop, mas a aposta era clara: migrar para o mobile. Em 2013, a Movile entrou com capital e visão estratégica. Em 2014, assumiu o controle, acelerou a digitalização e levou a operação para a nuvem. O impacto foi imediato: de 12 mil pedidos por mês em 2011 para 314 mil em 2014, chegando a 6,1 milhões em 2017.
O lego tecnológico
Esse salto só foi possível com uma base tecnológica pensada para escalar. A migração para AWS deu elasticidade: a infraestrutura cresce nos horários de pico e encolhe nos momentos de baixa, equilibrando custos e garantindo estabilidade. Depois, a empresa quebrou o monólito em microsserviços: cada módulo independente, pagamentos, catálogo, logística, pode evoluir sem travar o resto.
Para coordenar essa fragmentação, adotou o monorepo, centralizando código e garantindo consistência. Tudo isso costurado por uma arquitetura orientada a eventos, onde cada pedido dispara sinais que acionam pagamentos, restaurantes e entregas em paralelo. O resultado é um lego tecnológico robusto, flexível e resiliente.
Inteligência artificial como motor invisível
Com a base resolvida, o foco virou dados. Em 2018, o iFood montou um data lake e, em 2019, comprou a Hekima para acelerar machine learning. Hoje, são mais de 170 modelos de IA e 130 de IA generativa em operação, responsáveis por 14 bilhões de predições mensais.
Os ganhos são concretos: SLA de entregas subiu de 80% para 95%, distâncias percorridas caíram 12% e tempo ocioso de entregadores caiu 50%. Ao mesmo tempo, recomendações personalizadas aumentaram conversão e engajamento.
O ciclo é: mais pedidos geram mais dados, que alimentam melhores modelos, que atraem mais pedidos. É uma vantagem difícil de replicar.
Modularidade em ação: o caso das bebidas
A prova de que a plataforma era realmente modular veio em 2016, quando a Ambev lançou o Zé Delivery. O app especialista em bebidas prometia conveniência: cerveja gelada, rápido e barato, aproveitando a cadeia de distribuição da Ambev.
O iFood poderia ter perdido espaço nesse consumo específico, mas reagiu rápido. Em poucos meses, criou uma vertical de bebidas dentro do superapp. O processo exigiu apenas três ajustes: onboarding de novos parceiros (adegas e distribuidoras), uma seção dedicada no app e algoritmos logísticos ajustados para priorizar rapidez.
A comparação entre os dois modelos é reveladora. O Zé Delivery, como especialista, entrega experiência superior em seu nicho. Mas enfrenta baixa frequência de uso: ninguém pede cerveja todo dia. Já o iFood, como generalista, tem uso quase diário. Convencer um cliente a incluir bebidas no carrinho custa muito pouco. Para o Zé, cada cliente novo implica em CAC alto, campanhas de marketing e descontos.
O resultado é que, em quatro anos, a vertical de farmácias do iFood cresceu 527 vezes, e bebidas seguiram o mesmo caminho de tração rápida. Em 2023, estimativas de mercado apontavam que o iFood já concentrava mais de 60% dos pedidos de bebidas feitos via apps no Brasil, diluindo a vantagem inicial da Ambev.
O ponto estratégico não é derrotar o Zé no seu próprio jogo, mas reter a transação dentro do ecossistema. O superapp não precisa ser o melhor em cada nicho, precisa ser bom o suficiente para que o cliente não saia. Essa é a essência da disputa generalista vs. especialista.
Hoje o iFood mudou a forma de vender as bebidas, copiando a abordagem do Zé Delivery, onde o cliente compra a bebida independente da loja ou adega, mas com a agressividade já conhecida do iFood nas promoções e ofertas.
O delivery como porta de entrada
A partir daí, o iFood deixou de ser apenas um marketplace de comida. O iFood Benefícios lançou um cartão multibenefícios aceito em milhões de estabelecimentos, criando presença no mercado B2B. O iFood Shop virou canal de compra de insumos, embalagens e produtos de limpeza, aumentando a dependência dos restaurantes.
O iFood Pago entrou como fintech, oferecendo conta digital, maquininha e crédito baseado nos dados transacionais. Para um restaurante, sair da plataforma significa perder não apenas clientes, mas crédito, insumos e ferramentas de gestão.
O custo de saída cresce exponencialmente, e o fosso competitivo fica mais profundo.
Crescimento inorgânico e parcerias
O ecossistema foi acelerado com aquisições e parcerias. A compra da Hekima trouxe IA, os investimentos em PDV como Saipos e E-Deploy digitalizaram o salão físico e a aquisição de 20% da CRMBonus adicionou fidelização ao portfólio.
A parceria com a Uber ampliou o alcance da base de usuários. Cada novo serviço não só gera receita, como reforça a rede de efeitos de dependência.
O iFood deixou de ser apenas app de delivery e passou a ser uma infraestrutura crítica para restaurantes e consumidores.
Os limites da expansão
A modularidade dá a sensação de que o iFood pode vender qualquer coisa, mas há limites. Produtos físicos com entrega rápida, como mercado e farmácia, são naturais.
Já serviços complexos, como passagens aéreas, exigem outro tipo de expertise. Por isso, o caminho é parceria, como já acontece com a Decolar. O futuro mais provável é o iFood se tornar o sistema operacional do pequeno e médio varejo brasileiro: integrando PDV físico, vendas online, cadeia de suprimentos e serviços financeiros em um só ecossistema.
As lições do iFood
O iFood prova que empresas de plataforma não são definidas pelo produto inicial. O delivery foi só a porta de entrada. O que sustentou a expansão foi a combinação de modularidade tecnológica, uso massivo de dados e construção de um ecossistema de alto custo de saída.
São três lições para qualquer empresa digital: tecnologia precisa moldar estratégia, dados são barreira competitiva e ecossistemas geram domínio.
O iFood não é sobre entregar comida, é sobre entregar infraestrutura para o varejo brasileiro.
Fontes e Sites para leitura