O circo do estoicismo e o teatro das empresas “orientadas a produto”
pensamento aleatório sobre o mundo corporativo e a tal "cultura de produto".
O mundo é um circo. Ou um engodo.
Na conversa que inspirou essa reflexão, o filósofo Luís Felipe Pondé descreve o engodo como aquela coisa que parece sólida, mas é encenação. Um truque. Algo que se apresenta de forma convincente, mas se você olha muito de perto, ou te cega como o sol ou revela sua falsidade.
“Então assim, mas ó, a gente falou de estoicismo há pouco, uma das coisas que os estoicos romanos refletiam muito era sobre essa ideia de sucesso mesmo, né? A ideia de que o mundo é meio que um engodo, né? Isso é uma constante históica típica. Hã, essa estranha sensação de que o mundo é um circo, certo? de que ele é meu engodo, de que rola uma coisa, mas na verdade essa coisa é mais ou menos falsa.” - Pondé no Flow #458 - minuto 40:41.
É uma crítica ao modo como ideias filosóficas são embaladas para consumo fácil. O estoicismo, por exemplo. Originalmente, uma filosofia para encarar o sofrimento, a finitude, a limitação do controle humano, aceitando a contingência sem perder a dignidade. Mas sua versão pop é vendida como receita de autoajuda para aguentar qualquer coisa.
É nesse ponto que o estoicismo, mal digerido, vira engodo: faz você achar nobre aceitar injustiça, resignar-se a ambientes hostis ou abrir mão de questionar estruturas de poder. Ele se transforma num verniz moral para suportar o que não deveria ser suportado.
Esse engodo, essa aparência de sabedoria que, na prática, serve para pacificar e amortecer, aparece também no discurso corporativo.
As empresas adoram dizer que têm “cultura de produto”. Falam em ambiente seguro para errar, mas errar custa capital político. Falam em meritocracia, mas mérito depende de patrocínio. Prometem decisões baseadas em dados, mas quem tem poder escolhe quais dados importam.
É um teatro bem montado.
Assim como o estoicismo de palco pede resignação para não confrontar as estruturas que oprimem, a “cultura de produto” corporativa muitas vezes pede alinhamento para não confrontar as decisões que já vieram prontas.
Experimentação? Claro, desde que não mexa nos interesses do board.
Autonomia? Sim, para decidir entre três alternativas já aprovadas.
Cultura segura para questionar? Desde que você saiba quem não deve ser questionado.
A grande ironia é que esses valores são reais e importantes. A cultura de produto genuína muda resultados. A experimentação honesta transforma estratégia. A segurança psicológica fortalece times. Mas esses princípios, para valerem algo, precisam sobreviver ao atrito com o poder real.
É nesse atrito que muitos discursos morrem.
No fundo, vender “cultura de produto” sem investir em autonomia real é tão enganoso quanto vender estoicismo como caminho para aceitar injustiças estruturais. Ambos são versões corporativas de um mesmo truque: pacificar, amortecer conflito, tornar o desconforto palatável.
A pergunta que resta é: o que fazer com isso?
Talvez o primeiro passo seja parar de comprar essas promessas prontas. Olhar para a estratégia, para as métricas, para as decisões reais. Ver quem manda. Ver quem ganha. Ver quem pode dizer não.
É ali que está a cultura de produto de verdade. O resto é enfeite de palco.
Fato!
Texto maravilhoso! Infelizmente a “cultura de produto” tão falada em empresas que querem parecer inovadoras, não passa de mais uma forma de travestir uma estrutura organizacional obsoleta, uma cultura tradicional e tóxica.