A discussão sobre o impacto da inteligência artificial sempre oscilou entre otimismo e catastrofismo. O estudo de Hosseini e Lichtinger (Harvard, 2025), baseado em dados de mais de 62 milhões de trabalhadores nos EUA, oferece algo mais sólido: evidências de que a IA generativa não apenas reorganiza tarefas, mas está corroendo um pilar essencial das carreiras, as vagas de júnior.
Nas empresas americanas que adotaram IA desde 2023, a curva de contratação de iniciantes despencou, enquanto as posições mais seniores continuaram a crescer. Não se trata de cortes em massa, mas de algo mais sutil e talvez mais preocupante: as portas de entrada estão se fechando.
Esse movimento representa uma mutação no conceito clássico de “skill-biased technological change”, que ao longo das décadas deslocou trabalhadores de média qualificação enquanto aumentava a demanda por habilidades mais raras.
Agora, a lente se desloca para dentro da própria empresa. O efeito não distingue apenas entre profissões, mas entre níveis hierárquicos: juniors versus seniors. Nos EUA, tarefas repetitivas e cognitivas típicas da base da carreira se tornaram presas fáceis para copilots e LLMs. Se antes revisar contratos ou organizar dados eram ritos de passagem, hoje esses ritos estão sendo repassados para as máquinas. No Brasil, o paralelo é: grande parte do trabalho de estagiários e analistas em bancos, consultorias e escritórios já pode ser feito por IA.
Os números americanos são contundentes. Entre 285 mil empresas, aquelas que criaram vagas de “AI integrator” reduziram a contratação de juniors em 7,7% em apenas seis trimestres após 2023. O efeito foi ainda mais forte em setores de varejo e atacado, onde a queda chegou a 40% por trimestre. O curioso é que essa redução não veio de demissões, mas da simples ausência de novas vagas de entrada.
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O funil estreitou, e quem já estava dentro ganhou mais chances de promoção. No Brasil, onde o varejo é o maior empregador de jovens, é difícil imaginar que essa tendência não bata à porta nos próximos anos.
O recorte educacional nos EUA mostrou um padrão em U. Graduados de universidades de elite mantiveram espaço pelo diferencial de produtividade, enquanto os de instituições mais baratas sobreviveram pelo custo reduzido. Já os formados em universidades de nível intermediário foram os mais atingidos, justamente por estarem no meio do caminho em custo e qualidade.
Esse efeito pode parecer distante, mas há um alerta para o Brasil: se a IA começar a reduzir vagas de entrada aqui, o peso do nome da faculdade e do custo de contratação também pode redefinir quem consegue ou não dar o primeiro passo.
Há implicações de longo prazo. Economistas como Deming (2023) mostraram que boa parte do crescimento salarial ao longo da vida depende do ponto de partida. Nos EUA, entrar em um cargo júnior e avançar internamente é o motor da progressão. Se esse ponto de entrada é bloqueado pela IA, cria-se um vácuo que pode reduzir o estoque de talentos seniores no futuro.
No Brasil, onde programas de trainee e estágio sempre foram rotas de mobilidade social, o risco é semelhante: empresas economizam no curto prazo, mas correm o perigo de não ter líderes preparados daqui a alguns anos.
Do ponto de vista das empresas americanas que já adotam IA, surge um paradoxo. Ao mesmo tempo em que reduzem contratações de entrada, aumentam promoções internas. O recado é: a IA não elimina a necessidade de pessoas, mas transforma o valor relativo da experiência. O júnior que resiste ao funil estreito precisa assumir mais rápido responsabilidades que antes viriam apenas anos depois.
Para o Brasil, isso significa repensar o desenho de programas de estágio, analistas e trainees. O desafio passa a ser não apenas selecionar bem, mas acelerar o desenvolvimento.
O impacto setorial reforça a tese de que a transformação não está restrita às big techs. No varejo, no atacado, em serviços profissionais, a substituição de tarefas repetitivas por IA já se espalha nos EUA. E isso gera consequências sociais relevantes: se antes a experiência inicial de trabalho em atendimento, suporte ou análise de dados era a porta de entrada para milhões de jovens, essa porta está sendo trancada.
No Brasil, onde grande parte da juventude ingressa no mercado por esses mesmos setores, o alerta é claro. O efeito agregado ainda pode ser menor, já que só 3,7% das empresas americanas do estudo haviam adotado IA até 2025, mas o sinal é inequívoco: a tendência não é marginal, é estrutural.
O risco é de uma geração de talentos órfãos do degrau inicial. O trabalho de entrada sempre foi mal pago, mas tinha valor simbólico e estratégico: era o rito de passagem que permitia acumular repertório. Ao desaparecer, ele não só ameaça carreiras individuais, como corrói a própria mobilidade social.
Nos EUA, a desigualdade pode se ampliar porque alguns jovens já não conseguem começar; no Brasil, o risco é ainda maior, porque a primeira experiência costuma ser decisiva para sustentar financeiramente o estudante e abrir portas futuras.
O ponto é que talvez não estejamos diante de um problema de “empregabilidade”, mas de arquitetura de carreira. Se a IA tomou posse dos primeiros degraus, a questão central não é como proteger tarefas, mas como redesenhar rotas de entrada. Isso pode incluir desde programas de imersão acelerada até modelos híbridos de formação prática. Sem isso, o risco não é apenas de um “apocalipse júnior” nos EUA, mas de um vazio geracional de líderes também no Brasil.
Outras leituras importante sobre o tema:
É a nossa área sofrendo um achatamento inédito. Concordo com a leitura (escrevi sobre isso em maio https://orenatomendes.substack.com/p/brasa-tende-20252).
Fazendo um adendo, tentando uma projetada, acho que as vagas de entrada vão ser os projetos pessoais.
Não vai fazer sentido não tentar "vibe codar" alguma coisa pessoal enquanto espera ser contratado. Entrevistadores vão julgar nosso processo "na prática".
100% de acordo com o texto e só tenho preocupações. Fui estagiário e trainee e consegui ter uma carreira bem acelerada até ocupar um cargo formal de produto. Mas meu estágio já foi muito acima da média comparado a atividades que um estagiário geralmente faz, tive ótimos líderes e sempre contato direto com gerente e coordenadores, e precisando me virar bem mais pela complexidade de entregas, ônus e bônus. Mas comecei minha carreira no corporativo aos 26, então isso ajudou.
Pensando em pessoas mais jovens que ainda vão precisar a lidar com as frustrações do trabalho, aprendizados que demoram e precisam de exposição ao risco e errar com o "aval" do gestor. Esse comportamento vai ser cada vez menos tolerável, já que a IA pode ser "melhor" que um cargo de entrada.
O mercado já é beeeem competitivo e se for mais ainda para posições inicias, já vai precisar ser "acima da média" e infelizmente os selos, voltam a ser a primeira coisa avaliada para poucas vagas de entrada no futuro. Além que a régua pode ficar bem distorcida, né? Vão querer gente cada vez mais pronta e executadora (uso de IA pra tudo) pra essas posições e menos gente que está aprendendo, refletindo e usando senso crítico.