Post mortem do Google Glass
O frenesi em torno de óculos com realidade aumentada já teve um boom no passado, mas o que aconteceu com o modelo lançado pelo Google em 2013?
Se tem uma coisa que o anúncio do lançamento do Vision Pro fez, foi reascender um segmento que até então não tinha grande visibilidade há anos. A Apple trouxe como previsão o início de 2024 o lançamento de seu mais novo gadget, e isso fez com que outras empresas também passassem a se movimentar em relação ao segmento de óculos de realidade mista.
Durante o evento Meta Connect 2023, Mark Zuckerberg anunciou novidades em relação a parceria já existente entre Meta e a Ray-Ban: a nova geração de óculos inteligentes permitirá a incorporação de um novo assistente Meta AI, e será capaz de transmitir ao vivo o que um usuário estiver vendo diretamente para o Facebook e Instagram.
Além de diversas outras funcionalidades presentes nos óculos inteligentes (como o acionamento de diferentes funções por voz), a abordagem da Meta parece ser mais convencional do que a da Apple: adaptar óculos que o público já usa de forma regular, ao invés da criação de um verdadeiro computador com hardware invejável desenvolvido pela empresa comandada por Tim Cook.
Anúncios oficiais da Meta com os óculos inteligentes desenvolvidos em parceria com a Ray-Ban e a Apple com o Vision Pro.
Premissas básicas
É importante a distinção entre modelos de óculos inteligentes pautados pela realidade virtual, ou VR conforme acrônimo em inglês, que constrói um mundo próprio 100% digital e independente (como no caso do modelo Oculus Quest 2 da Meta) e os modelos de realidade aumentada, que não criam um novo ambiente por si só, mas utiliza do mundo real para incluir objetos e interações diversas de modo virtual.
O termo usado no anúncio do Vision Pro, inclusive, dá ênfase no termo computação espacial (ou “Spatial computing” no original), uma distinção clara do termo cunhado por Zuckerberg no passado, “Metaverso”, aplicado para o contexto de realidade virtual.
E, dentro do tema de realidade virtual, já é possível afirmar que temos uma experiência imersiva avançada: games como Horizon Call of the Mountain trazem uma experiência muito convincente de que o jogador está literalmente dentro do jogo em si, com outras aplicações igualmente convincentes.
Entretanto, recentemente diversas empresas tem se movimentado dentro do segmento de wearables aplicados a realidade virtual, divisão que ainda permanece sem um empresa dominante no mercado (e sem experiências consolidadas de uso pelo grande público).
Déjà vu
Ao pesquisar e me aprofundar sobre os futuros lançamentos da Apple e Meta, tive a sensação de já ter experimentado algo semelhante no passado. Um lançamento que, na época, causou muito alvoroço por conta de uma grande Big Tech investindo de forma maciça em óculos inteligente -soa familiar?
O projeto do Google Glass começou por meio da Google X, o braço inovador mais disruptivo da companhia, em meados de 2011.
E não demorou muito para o produto chegar inicialmente ao mercado: o Google começou a vender um protótipo do Google Glass para "Glass Explorers" qualificados nos EUA em abril de 2013, por um período limitado, pelo valor de U$ 1.500, antes de ser disponibilizado ao público de forma geral em maio de 2014.
Dez anos depois, em março de 2023, o anúncio oficial da descontinuidade do Google Glass foi feito, quando algumas páginas oficiais do produto foram alteradas para informar que suas vendas seriam finalizadas a partir de 15 do mesmo mês.
O que aconteceu com os primeiros óculos inteligentes lançados em grande escala com uma empresa com a abrangência e aporte do Google? E fazendo um recorte para o cenário atual, o que tanto a Apple quanto a Meta (e o próprio Google) podem aprender com esse intrigante case?
Primeiro tutorial do Google Glass, disponibilizado em 2013.
Lançamento do Google Glass
Originalmente a proposta de valor do Google Glass era exibir as informações do usuário diretamente na lente, trazendo dados úteis e dinamismo em relação ao seu uso (como notificações no calendário, previsão do tempo, etc.)
Dentre as features do produto, constava uma câmera de 5 megapixels posicionada de modo a captar tudo o que o usuário poderia visualizar, um touchpad para iteração a partir do toque do usuário, e conexão com a internet para compartilhamento de informações em tempo real (por meio do acesso a diferentes games e aplicativos).
Entretanto, um dos primeiros motivos que podem ajudar a explicar a derrocada do Glass é justamente sua câmera: a falta de familiaridade da população de forma geral em interagir com pessoas que poderiam filmar literalmente tudo em determinados ambientes fez com que as pessoas ficassem inseguras próximas usuários do Google Glass.
Esse frenesi fez com que surgisse até um termo específico para usuários do produto que se comportavam de forma inadequada: glassholes.
Isso teve reflexo por meio de diversos estabelecimentos que baniram o uso do Google Glass dentro de suas dependências, como cinemas, bancos, escolas, hospitais, casinos e tantos outros. A premissa de gravação desses locais colocou em cheque seu uso de forma integral por possíveis clientes, gerando uma fricção por parte de seus consumidores no dia a dia.
Limitações
Outro ponto importante para ser destacado é a questão envolvendo suas limitações técnicas: as especificações do dispositivo não compensavam tanto quanto a compra de um smartphone ou até mesmo de um smartwatch dos anos 2010.
Por um valor semelhante (e muitas vezes menor), o usuário poderia comprar um equipamento mais avançado tecnicamente, com uma experiência de usabilidade facilitada pela familiaridade no uso de celulares (além da capacidade do processador: o Glass possuía apenas 2 gigas de RAM).
Outro ponto importante é a bateria, já que o Google Glass durava em torno de um dia nas mãos de um consumidor moderado. O uso de recursos como captação de vídeos, entretanto, esgotavam com ainda mais facilidade a carga no gadget.
Gap entre anúncio e lançamento
O lançamento oficial do modelo de óculos de realidade aumentada foi em abril de 2013, restrita a apenas alguns desenvolvedores, visando estimular a criação de novas aplicações a ele. Mais tarde, a restrição das vendas se manteve até 2014, com apenas pequenas expansões de convites para compras.
O grande atraso entre anúncio e efetivamente vendas pode ter feito possíveis clientes simplesmente perderem o interesse, começando a duvidar do serviço e até mesmo criar expectativas irreais em relação ao produto.
Outro ponto que não foi exatamente claro durante o posicionamento do Glass foi o público ao qual ele seria inicialmente atribuído: o valor de U$ 1.500 não ajudou como chamariz (a não ser para curiosos e entusiastas da tecnologia), já que por um valor menor era possível o comprador comum obter um bom modelo de smartphone na época.
Demonstração uso do Google Glass durante o Google I/O 2012, por meio de paraquedistas e outras pessoas utilizando o produto em tempo real.
Usabilidade
Um ponto fundamental é o de propósito do produto, ou o Product Market Fit (PMF): qual o problema que o modelo de óculos inteligente do Google estava resolvendo, exatamente? Quais os cases reais que efetivamente agregaram valor aos consumidores finais?
Sem definições claras para trazer ao consumidor porque ele deveria pagar mais caro por um produto com capacidade operacional menor, o item caiu em desuso com certa facilidade.
Último suspiro
Em 2015 o Google anunciou que a versão do produto para consumidores finais seria descontinuada, apostando as fichas em uma versão corporativa que pudesse atender a demandas específicas desse segmento por meio do modelo Enterprise.
Na prática, isso significou mais facilidade para colaboradores industriais, que precisavam ler ou ouvir instruções enquanto tinham suas mãos ocupadas fazendo a manutenção de um equipamento, por exemplo.
A transmissão da visualização do que uma pessoa está fazendo se mostrou útil para transmissão de direcionamentos em tempo real: uma forma efetiva de utilização do produto em si.
Outra aplicação que despertou interesse foi à partir dos médicos: a captação de imagens e vídeos ajudava na consolidação de diagnósticos com pacientes enquanto ainda era possível interagir com eles. Mais praticidade durante o mesmo o espaço de tempo.
Entretanto, mesmo com um preço em média 33% menor do que o do modelo lançado anteriormente, o modelo de negócios não se sustentou para manter o Google Glass ativo. Em 2023 a companhia anunciou o encerramento da linha de produtos como um todo.
Vídeo mostrando cases reais de colaboradores de diferentes segmentos utilizando o Google Glass.
Aumento de disputa
Com uma tecnologia até então pouco explorada, é fácil entendermos por que essa verdadeira corrida teve início entre as principais Big Techs: com a popularização dos smartphones consolidada, a possibilidade de consumidores substituírem ou complementarem seus devices por meio de óculos de realidade aumentada representa um share de mercado considerável.
Mais do que isso: as informações referentes ao usuário podem passar a ser ainda mais completas e dinâmicas. Informações referente ao que prende a atenção do consumidor com mais assertividade (para onde ele olha e por quanto tempo, por exemplo), ou ainda o mapeamento de quais produtos e marcas estão presentes nas casas de seus consumidores.
As possibilidades são muitas e os ganhos por parte das organizações também, entretanto o que (ainda) não está claro é efetivamente a proposta de valor para seus consumidores. Talvez essa seja apenas mais uma leva de óculos inteligentes que, aos poucos, podem trazer maior receptividade por parte de população de forma geral.
Dentre todos os insights que os motivos da derrocada do Google Glass podem nos trazer, o principal deles talvez seja de que é necessária a consolidação da proposta de valor a possíveis clientes em larga escala com uma estratégia de lançamento assertiva, antes de investimentos agressivos para tomar um segmento que ainda não tem cases de sucesso para o público em larga escala.
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Eu tive oportunidade de experimentar o Google Glass e lembro que me senti muito atordoada. Me parece que o modelo da Apple é um periférico para usar em casa enquanto a versão Meta + Ray-ban é algo mais casual. Acredito que tem público pra ambos e que dez anos depois, a tecnologia evoluiu bastante.
Até mesmo os QR Codes que se usava pra realidade mista eram desconhecidos da populacao.
Lembro de algumas iniciativas educacionais de apontar para o QR em cards para ter animacoes.
Agora temos QR code ate em meios de pagamento como Pix.
Aguardemos cenas dos proximos capitulos.