Nos últimos anos, a experiência de assistir a um blockbuster da Netflix se tornou previsível. Produções como Red Notice e The Gray Man parecem caras, cheias de estrelas globais, mas deixam a sensação de vazio logo após o fim. Críticos já classificaram esse fenômeno como “conteúdo processado por máquina”.
Não é que a Netflix tenha um robô escrevendo roteiros, mas sim que sua engrenagem de dados e métricas cria um ambiente em que só sobrevive o conteúdo mais seguro, genérico e fácil de engajar.
A arquitetura da atenção
A Netflix construiu um motor de dados que vai muito além de recomendações superficiais. Desde a competição Netflix Prize, em 2006, a empresa mostrou sua obsessão em prever o comportamento dos assinantes. Hoje, mais de 80% de tudo o que é assistido na plataforma vem das sugestões algorítmicas, um sistema que sozinho tem valor estimado de US$ 1 bilhão ao ano em retenção de clientes.
A escala é impressionante: em 2017, já eram cerca de 700 bilhões de eventos de dados registrados por dia. Cada clique, pausa, avanço, abandono ou simples navegação vira insumo para o algoritmo. Mas o diferencial está na lógica dos sinais priorizados. O sistema se afastou do feedback explícito, como as antigas notas de 5 estrelas, e passou a privilegiar o comportamento implícito.
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Na prática, a recomendação é guiada por seis camadas principais:
Histórico de consumo real: se você concluiu ou abandonou uma série, quantos episódios maratonou em sequência e com que frequência volta a um gênero.
Interações de navegação: quanto tempo você deixou o cursor sobre uma capa, se assistiu a um trailer até o fim ou rolou sem dar play.
Contexto de uso: horário, dia da semana e dispositivo usado (TV, celular, tablet), para prever se você busca algo curto ou longo.
Microgêneros (altgenres): mais de 77 mil categorias, que vão de “dramas políticos sombrios” a “comedias românticas excêntricas”.
Clusters de recomendação: mais de 1.300 grupos de afinidade que cruzam gostos globais, criando combinações inesperadas (ex.: fãs de Fórmula 1 também consomem documentários de rock clássico).
Feedback explícito: o “joinha” ainda existe, mas com peso menor; o consumo real vale mais do que a opinião declarada.
O efeito é claro: um filme mediano, mas concluído até o fim, vale mais do que uma obra sofisticada que metade abandona no meio. A métrica que realmente conta é atenção sustentada, mesmo que passiva. Isso puxa toda a cadeia criativa para histórias lineares, ganchos imediatos e roteiros fáceis de seguir enquanto o espectador divide a atenção com o celular.
O filme de algoritmo
Aas engrenagens que fazem nascer esse novo tipo de produção está atrelado a uma fórmula que não é explícita em um manual interno, mas pode ser reconstruída pela forma como os dados moldam as decisões.
Narrativa e ritmo: histórias simples, ganchos nos primeiros minutos e muita exposição. O “hook window” é cada vez menor, já que a métrica central é reter o espectador até o fim.
Elenco: a estratégia prioriza estrelas globais de segunda camada, como Ryan Reynolds, Dwayne Johnson e Gal Gadot. Não são nomes que abrem bilheteria sozinhos, mas oferecem alto reconhecimento em escala mundial.
Gênero e tom: misturas de gêneros consagrados, ação, comédia, heist, que funcionam em qualquer mercado. O tom é “cosy”, projetado para entreter sem desafiar.
Estética: fotografia digital brilhante e de baixo contraste, som mixado para qualquer tela, do celular ao home theater. A busca por consistência global elimina identidade visual.
Títulos: funcionam quase como metadados de marketing, descritivos e imediatos. Exemplos claros: Tall Girl, Murder Mystery, Uglies.
Um dado ilustra a lógica de embalagem: 82% da atenção do usuário ao navegar está na thumbnail. Por isso, a Netflix investe pesado em personalização de capas, testando variações e exibindo a que tem maior chance de gerar clique em cada cluster. Essa prática pode aumentar em até 30% o engajamento. O mesmo título pode aparecer com Matt Damon e Minnie Driver para quem consome romances, ou com Robin Williams para quem prefere comédias.
Com isso, a recomendação deixa de ser apenas catálogo e se torna um laboratório de marketing contínuo. As 77 mil altgenres e os 1.300 clusters de gosto alimentam tanto a escolha do próximo título quanto a forma como ele será apresentado. Cada detalhe, da narrativa ao pôster, é calibrado para maximizar a métrica que sustenta o modelo: atenção prolongada e previsível.
Casos emblemáticos
Red Notice (2021), com orçamento de US$ 200 milhões, é o exemplo perfeito. Uniu Johnson, Reynolds e Gadot, mas cada um apenas repetindo sua persona conhecida. O filme foi descrito por críticos como “menos um filme e mais uma coleção de buzzwords”. Apesar do investimento astronômico, seu CGI foi acusado de barato e sua química de inexistente.
No ano seguinte, The Gray Man repetiu a lógica com outro orçamento superior a US$ 200 milhões. Estrelado por Ryan Gosling e dirigido pelos irmãos Russo, foi tachado de “programaticamente entediante”. A estética, otimizada para o “house style” da plataforma, chegou a comprometer a presença de atores carismáticos por conta da fotografia em baixa luz. O resultado foi um produto industrial: funcional, mas criativamente vazio.
Esses dois filmes ilustram a essência do “filme de algoritmo”: grandes orçamentos, estrelas globais, narrativa simples e estética genérica. Produtos feitos para serem consumidos em massa, mas esquecidos rapidamente.
As exceções que confirmam a regra
Para não se limitar a conteúdos descartáveis, a Netflix também financia projetos de prestígio. Roma, de Alfonso Cuarón, e The Irishman, de Martin Scorsese, são exemplos de apostas de alto risco que geraram legitimidade cultural e premiações. Do outro lado, fenômenos inesperados como Squid Game e All Quiet on the Western Front mostraram que ideias arriscadas ainda podem escalar globalmente.
Mas, como alguns portais sugere, isso não contradiz a lógica: são exceções estratégicas. Os filmes de algoritmo garantem engajamento previsível e receita estável. É essa estabilidade que financia os projetos autorais ou arriscados. Em prática, um tipo subsidia o outro, enquanto a massa garante previsibilidade, os picos de prestígio oferecem marca e reputação.
O próximo estágio: IA generativa
A chegada da IA generativa promete turbinar esse modelo. Em agosto de 2025, a Netflix publicou diretrizes para uso de GenAI em produções. Elas permitem uso em ideação e mood boards, mas exigem aprovação explícita para criação de personagens ou cenários principais. Mais importante: proíbem parceiros de treinar seus próprios modelos com material da Netflix. A estratégia é clara: consolidar poder, garantindo que só a própria empresa, com acesso exclusivo a dados e IP, desenvolva a IA mais avançada.
O futuro próximo aponta para trailers personalizados, roteiros testados em múltiplas variações antes da produção e até finais diferentes otimizados para clusters específicos. O algoritmo de capas, que já responde por 82% da atenção e pode aumentar engajamento em até 30%, serve como precedente para imaginar esse nível de hiperpersonalização.
O preço a ser pago
Quanto mais personalizada fica a experiência, mais impessoal se torna o cinema. O risco é criar uma espiral de uniformidade, em que todos assistem versões ligeiramente diferentes do mesmo produto. Uma “cinematic hell”, como definiu o Guardian, onde a ilusão de escolha infinita esconde a ausência de surpresa, desafio e visão artística.
Fontes e outras leituras
The Guardian – Bland, easy to follow, for fans of everything
The Product Folks – How Netflix Uses Data to Win Over 230+ Million Users
Screen Daily – Netflix releases guidelines for using generative AI in productions