A ilusão de Cagan sobre times de produto e IA
A questão não é se a IA vai mudar times de produto - é óbvio que vai.
Todo mundo falando do novo artigo de Marty Cagan como se fosse escrito em pedra, quando na verdade é mais um exercício de futurologia cheio de "acredito" e "espero". Sua visão sobre times de produto com IA tem pontos interessantes, mas merece um olhar mais crítico.
Cagan começa o texto admitindo que está falando de um horizonte de 3-10 anos e que "não é algo possível hoje". Esse aviso já deveria nos fazer questionar o alarmismo que cerca o texto, mas parece que muitos pularam essa parte. Ele também reconhece que está hesitante em publicar isso por ser um tema sensível que afeta carreiras - o que é louvável - mas ainda assim segue com previsões que podem causar exatamente o pânico que teme.
A previsão central dele - times reduzidos de 8 pessoas (6 devs, 1 PM, 1 designer) para apenas 3 (1 de cada) - parte da premissa que a produtividade de engenharia vai continuar crescendo exponencialmente. Ele cita 20-30% de aumento atual com ferramentas de IA, mas depois dá um salto gigante pra "entrega quase instantânea" sem explicar como chegaremos lá. Essa lacuna entre o presente e o futuro imaginado é conveniente pra narrativa, mas pouco convincente.
Cagan faz uma distinção importante entre discovery e delivery, atribuindo o primeiro ao julgamento e o segundo ao processo. Segundo ele, as ferramentas de IA estão focando principalmente em automatizar o delivery. O problema é que essa divisão limpa na teoria é muito mais confusa na prática.
Quantas vezes decisões cruciais de produto são tomadas durante a implementação? Quantas vezes o feedback dos engenheiros durante o desenvolvimento muda completamente a direção do produto?
É curioso como Cagan argumenta que precisaremos do "trio" completo (PM, designer, dev) mesmo com IA, mas não explica por que esses papéis seriam imunes à automação enquanto POs e feature teams seriam dispensáveis. Parece mais uma preferência pessoal que previsão baseada em dados. Ele menciona que precisaremos de um PM para "resolver as muitas restrições de negócio", um designer para "resolver a experiência do usuário" e um engenheiro para "resolver a tecnologia" - mas não explica por que essas funções precisam ser pessoas diferentes.
O cálculo financeiro que ele faz é tentador - reduzir custos de $24M para $2M por ano numa empresa média. Mas quem já viu restruturações sabe que raramente são tão simples ou eficientes como no papel. Sem falar que empresas raramente reduzem custos apenas para aumentar margens - a pressão competitiva força reinvestimento em novas áreas, marketing ou expansão.
Um dos pontos mais contraditórios do artigo é quando ele afirma que "é difícil imaginar um cenário onde o nível de investimento aumentado chegue perto de compensar o nível de redução". Em outras palavras, acredita que haverá redução líquida de empregos. Mas algumas linhas depois, sugere que pode haver "explosão de inovação e startups" com custos menores. Se haverá explosão de novas empresas, não deveríamos ver mais empregos, ainda que diferentes dos atuais?
Outro ponto questionável é a noção de "carga cognitiva assistida" que permitiria times menores lidarem com sistemas mais complexos. Ele promete explicar esse conceito em um artigo futuro, mas usa ele como base para uma previsão importante: que times menores poderão ter escopo maior. Sem entender como isso funcionaria, fica difícil avaliar a plausibilidade dessa afirmação.
Sua divisão entre "discovery" e "delivery" simplifica demais a realidade. Em produtos complexos, a entrega não é apenas execução mecânica - envolve inúmeras decisões técnicas e de experiência que afetam o sucesso do produto. Da mesma forma, o discovery não é puramente julgamento - envolve processos estruturados de pesquisa, validação e priorização.
Uma análise mais detalhada revela que Cagan está construindo uma narrativa que convenientemente se alinha com sua visão de produto que defende há anos: empoderamento de times autônomos focados em outcomes. Isso não é necessariamente ruim, mas é importante reconhecer que não é uma previsão neutra baseada apenas em avanços tecnológicos.
A questão não é se a IA vai mudar times de produto - é óbvio que vai. Mas ele pinta um cenário muito binário e inevitável, quando a realidade provavelmente será mais diversa, com diferentes modelos coexistindo dependendo do contexto, maturidade e tipo de produto.
Algumas empresas já operam com times pequenos e autônomos, outras precisam de estruturas maiores e mais especializadas devido à complexidade do domínio.
🍵 vamos refletir…
Como você avalia previsões sobre o futuro da área de produto sem cair no hype nem no pânico desnecessário?
O link do artigo do Marty Cagan: https://www.svpg.com/a-vision-for-product-teams/
🫵🏻 vamos para enquete…
Vale lembrar que esse texto é apenas uma opinião, com um olhar mais crítico sobre o texto escrito e não sobre a pessoa do Marty Cagan, que contribuiu e vem contribuindo com a área de produto faz décadas.
Galera, tá endeusando os PMs. Para mim, estamos voltando a uma gourmetização de um cargo que nem liderança formal exerce. Gosto dos livros do Marty, acho uma ótima base teórica, tem vários artigos muito bons no blog, mas pra início de conversa, a gente tem que entender que o cara está falando de uma outra realidade, o nome do blog do cara "Sillicon Valley". E pra piorar, muita gente não tá lendo o artigo e concordando com resumo de uma interpretação. E de pessoas que já tem um contexto de trabalhar com IA no dia a dia.
Única coisa morrendo de verdade é o senso crítico.
Li o artigo e o grau de enviezamento que o Cagan coloca sobre o Product Manager ser o centro das atenções é surreal. O PM deve ser tão centro das atenções, quanto outra qualquer função na empresa. E depois defende uma coisa que eu discordo a 100%, e parece que defende para "segurar" o PM que é vai haver mais trabalho de product discover. Cara, o product discover, considerando uma matriz RACI é responsabilidade dos UX-Researchers, não do PM. Quanto muito o PM pode ser envolvido.
A IA irá ajudar, prejudicar tudo e todos, o PM não vai sair imune, agora se vai desaparecer? Não sei. Eu só vejo bajulação a esse senhor em vez de raciocínio crítico e olha lá que não estamos já nos 3-10 anos depois e as pessoas parece que já perderam o raciocínio.
Mais um exemplo: "Due to human nature (thinking that everyone else’s job is much easier than theirs), this has always been a problem, and probably will always be a problem." Só pensar que o PM é a função mais difícil do mundo é que vale.
Deixo o disclaimer que estou lendo o livro Inspired.